MUSEU E SOCIEDADE: PARÂMETRO HISTÓRICO DAS AGENDAS SOCIAIS REFLETIDAS NA CONCEPÇÃO DOS MUSEUS
- Izabela Queiroz
- 15 de mai. de 2021
- 6 min de leitura
Atualizado: 17 de mai. de 2021
Os museus desempenham o papel de registrar, conservar e investigar os períodos e ações da humanidade e para isso guardam dentro de si artefatos, obras, pinturas e objetos que contam histórias. Essas instituições que preservam as memórias culturais, políticas, sociais e filosóficas da nossa sociedade estabelecem relações com as formas de organização e momentos da sociedade, se transformando durante a passagem do tempo.
Ao longo dos séculos, a forma de organizar e catalogar esses objetos de valor histórico em um espaço destinado para este fim variam e se adaptam de acordo com as ideias de cada momento da história, isso acontece, pois, esses locais marcam a passagem do homem na sociedade desde que o mesmo começa a criar seus símbolos e formas de representação, assim, atribuindo valor afetivo, cultural ou material a objetos.
A ação de reunir itens que possuem algum valor ao indivíduo ou sociedade tem seu sentido intensificado com o fenômeno sociocultural denominado colecionismo que teve seu significado ampliado quando possuir objetos tornou-se uma manifestação de poder, visto que na antiguidade as grandes coleções pertenciam a reis, imperadores e senhores.
Assim, nos séculos XVI e XVII, época do Renascimento, os ideais clássicos retornaram e assim os primeiros antecessores dos museus surgiram formados por coleções privadas da burguesia ascendente, como banqueiros e comerciantes que se dedicavam a colecionar relíquias da Antiguidade e que encontram nos palácios suas primeiras formas de expressão arquitetônica, como é o caso do Palácio de Médici em Florença, considerado o primeiro museu privado da Europa.
Eduardo Costa, professor da FAUUSP no Departamento de História e Estética do Projeto afirma que “A arquitetura de um museu é sempre o resultado de uma forma de pensar de um grupo social, num dado contexto histórico. Sua implantação na cidade, suas fachadas, seus materiais, a organização espacial e tantos outros aspectos são sempre importantes evidências para a leitura do museu na sua relação com uma determinada época. “
Com isso, o colecionismo ganha ainda mais força e surgem os gabinetes de curiosidades ou quarto das maravilhas que se tornam ferramentas do colonialismo criadas por nobres, ricos comerciantes e estudiosos. Esses locais não seguiam um critério de organização muito claro no Renascimento, contendo objetos da antiguidade greco-romana e outros itens que representam curiosidade naturais ou artificiais, podendo ser agrupados em armários ou em salas que tinham o objetivo de juntar, interpretar e exibir as riquezas do mundo, se tornando então locais mais parecidos com coleções de estudo particulares do que com os museus que estamos familiarizados.

Um Gabinete de Colecionadoor" Johann Georg Heinz, 1664.
No século XVIII e XIX, os gabinetes de maravilhas em sua antiga forma vão desaparecendo e as transformações na forma de armazenar objetos de valor histórico em espaços destinados para essa ação e também a participação do público surgem, visto que as grandes transformações filosóficas e sociais daquele período afetaram a forma de organização dos espaços com o nacionalismo, a expansão colonial, a democracia e o iluminismo em ascensão, principalmente na Europa e América do Norte.
Nilce Aravecchia, professora da FAUUSP diz que esse período significa " um grande emaranhado nesse processo histórico, social, político, econômico, que vai produzindo o que é a arquitetura desses museus naquele momento em que essas instituições emergem de uma maneira mais próxima do que a gente entende como museu".
Com a Revolução Francesa e a Revolução Industrial Inglesa, os ideais iluministas se intensificaram e passaram a nortear as entidades museológicas favorecendo a formação de acervos organizados de maneira sistemática e transformando esses espaços, que até o final do século XVIII eram coleções de caráter privado mas que a partir do conceito de patrimônio público, passam a ser museus públicos, assim, transformando essas instituições em instrumentos de conhecimento democrático, trazendo aos museus o caráter educacional.
Além disso, as pilhagens com bens tomados realizadas nas guerras e invasões e que se tornaram símbolos das conquistas da corrida imperialista, formam um acervo arqueológico que ganham grande dimensão ao serem posteriormente incorporados aos museus, como é o caso do Museu do Louvre, que ao reunir as pilhagens de Napoleão, se tornou referência permanente para todos os outros que foram abrindo suas portas desde então.

A coleção foi ampliada sob o governo de Napoleão e o museu foi renomeado como Museu Napoleão, mas após a abdicação dele, muitas obras confiscadas por seus exércitos foram devolvidas aos seus proprietários originais (Foto reprodução: Charles Platiau/ Reuters)
Nessa época, a arquitetura desses espaços busca e recuperação do verdadeiro estilo grego em substituição ao exagero, rebuscamento e complexidade do estilo barroco. Nascendo assim um novo estilo, o neoclássico, em que os elementos da Grécia e Roma antiga como as colunas, frontões e arcos são mobilizados pelos arquitetos para realizar as organizações dos espaços que vão receber as grandes coleções.
Nilce Aravecchia diz que "esse conjunto diz menos sobre o museu em si, mas ao conjunto histórico que faz uma corrida pra pensar quem é o herdeiro dessa civilização Greco-Romana. Então se constrói a narrativa de que a Grécia e Roma foram os berços da civilização ocidental e junto com a construção dessa narrativa se projeta uma corrida pela herança desse legado e essa corrida por essa herança diz respeito a conformação dos museus"
No século XIX as transformações na forma de exibição e organização dos objetos continuaram e as entidades museológicas passam a representar também a onda nacionalista romântica da época contribuindo para a construção das identidades nacionais, Nilce diz que nesse período "os países estão constituindo seus nacionalismos, seja em função da disputa pelo que é entendido como universalidade, seja do que é entendido como identidade nacional, então, essas duas coisas estão sempre em tensão, e essa tensão vai aparecer nos museus e formulações da arquitetura, quando num dado momento o neoclássico vai ser preferido pra dar lugar ao que seriam as manifestações culturais das identidades locais dos países ou ao gótico, como a Inglaterra e Alemanha fizeram, pois vai se construir uma história dizendo que a verdadeira manifestação cultural desses países em função das elaborações no nacionalismo, teria sido o período medieval e não nessa ideia de universalidade que está muito presente nas elaborações que recorrem a herança greco-romana."
A chegada da contemporaneidade no século XX traz ao museu novas reflexões sobre sua ação social, visto que a discussão sobre memória era ditada até então pelos eruditos e intelectuais e as instituições museológicas exerciam uma postura passiva diante da sociedade. Nilce afirma que surge a discussão de que "a arte tem que se diluir na vida, na ideia de que a própria vida tem que remeter aos processos de produção artística, então o museu nesse sentido, passa a ter um papel pedagógico de simular o que seria essa relação mais próxima entre o indivíduo e a obra de arte."
Assim, esses espaços ganham então novas dimensões e surgem os museus locais e regionais na perspectiva da diversidade histórica e cultural com o intuito de se aproximar da vida cotidiana. Ação que também ocorre na arquitetura desses locais com o rompimento dos estilos históricos como o neoclássico e o gótico e abrem espaço ao estilo modernista, com locais livres de ornamentos refletindo a chegada das representações que buscavam ser mais próximas da realidade, como um espelho da sociedade que foi instaurado nas obras, na arquitetura e na filosofia da sociedade dessa época.

O Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand inaugurado em 1968 é um símbolo da arquitetura moderna (Foto: Izabela Queiroz)
Além disso, a forma que as exposições são alocadas no museu são reformuladas, sobre isso, Nilce diz que “Há uma discussão de aproximar a obra de arte do público, então aquele espaço museológico que está mais vinculado as paredes brancas, com a obra de arte pendurada de uma maneira sacralizada, digamos assim, dá lugar aos cavaletes de vidro para que o público circule no meio dessa obra de arte, buscando construir uma relação de proximidade entre o público e a obra de arte”.
No século XXI os museus ganham dimensões variadas e abrangentes, trazendo discussões sociais e educativas, além de profundidade na construção da aproximação entre o público, a obra de arte e o espaço museológico e para isso, surge a implantação de bibliotecas, espaços de descanso, cafés, restaurantes, lojas e demais áreas que permitam que o visitante esteja presente naquele local por um maior período de tempo.
Além disso, a interatividade ganha força no âmbito museológico, Eduardo Costa, professor da FAUUSP informa que “Todo museu é resultado de uma agenda de um determinado grupo social, que influi num determinado contexto histórico” sendo assim, não seria diferente no século XXI onde a interatividade é a palavra chave da nossa sociedade".

Museu do Futebol em São Paulo permite que os visitantes tenham acesso, a partir de experiências sonoras e visuais, a uma sequência de informações didáticas e ilustrativas que relacionam o esporte à vida dos brasileiros. (Foto: Izabela Queiroz)
Assim, a instituição se reestrutura para que o indivíduo se aproxime da obra de outra maneira, se distanciando da antiga maneira de visitar o passado, sem toques e a distância, passando a estabelecer relações físicas, intelectuais e emocionais por meio das novas tecnologias que surgiram no século passado, mas que ascendem nesse período com recursos sonoros, visuais e táteis que são inclusos nas exposições dos museus.
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